Jeremias não morreu!!

Jeremias não morreu. Como dizia minha avó, ele deitou, mas não fez a cama. Casou-se cedo. Separou-se tão rapido como se casou. Envolveu-se novamente com mulher, ainda mais rapidamente. Jeremias não queria morrer, pois morrer, para ele, significava acreditar no que diziam os padres: morrer é não ter consciência. Ele queria mais: ele desejava não estar entre os vivos e ter consciência disso, de que se livrou do fardo de estar vivo.

Jeremias cursou Arquitetura. Desenhou prédios, um museu e planejou o interior misterioso dos antros do fórum de sua cidade. Mas não se contentou com tão pouco em alma, em meio a tanto concreto. Lembrava-se de sua mãe ridicularizando seu pai, ao contar que ele a cortejava falando que iria alcançar as estrelas por ela. Quando criança, ele queria ser astronauta, mas ele tinha medo de morrer dormindo ao atravessar de volta a atmosfera. Ele queria ter a consciência de tudo. Quando Jeremias estava já com sua quarta mulher, ao saber que ela traía-o com o entregador de jornais (enquanto ele a traía com o projeto da sede do Jornal), ele desistiu de estar fixo na vida.

Jeremias esteve hospedado, para o espanto de todos, na garagem do fórum que ele mesmo idealizou. Foi removido para um albergue. Quiseram interná-lo, mas ele fugiu. Ele vivia fugindo. Ele fugia da vida e da morte. Quando ele passava na frente da igreja matriz, ele virava as costas para as  beatas. Quando alguém falava a ele sobre o diabo,  ele começava a atirar pedras. Ele tinha tornado-se um andarilho, rejeitado não pelo mundo, mas por si mesmo. Ele próprio se deserdara. A vida, de madrasta maledicente passou a ser sua operadora de cobrança.

Jeremias vivia pelas escadarias, louco de pedra, a reverberar contra as imundícies que não havia visto antes nas pessoas. Ele dizia que era justamente por isso que não ousava passar defronte a vidros ou espelhos, com medo de constatar ter-se tornado pior que elas. Suas únicas companheiras inseparáveis eram as pombas, com os olhos cinzentos ou negros, como a lhes dizer segredos auferidos do alto das igrejas.

Certa vez, ele já andava em trapos esfarrapados, quando uma beata, ao sair da igreja,  interpelou-o:
 - Meu filho, diga-me, o que aconteceu para você descer a esse nível?? O que seus pais devem estar achando disso no Céu?? 
 Ao que ele respondeu, entre dentes careados:
 - Já levantou da tumba e esqueceu de trocar a mortalha, velha??

Jeremias era motivo de chacota para uns adolescentes desocupados e de pena para outros. Mas aqueles não percebiam que invejavam o dinheiro que Jeremias teve e a irregularidade das suas noites que desejavam. As pessoas que sentiam pena dele simplesmente temiam o mesmo destino, ou pior, o inferno que acreditavam ter para si ou para os seus, reservado há muitas eternidades.


Jeremias, Crônicas, Contos


O mais louco destino teve o arquiteto, tão querido na cidade, depois do mais cobiçado sucesso. Mas bastaria um tropeço qualquer para que ele fosse noticiado ainda com muito mais entusiasmo. Pois, a língua doce agrada ao paladar e salta aos olhos, mas é a acidez que atiça o apetite das massas. No meio da revolta, o movimento rotatório de sua alma conturbada de dores o arremessou no redemoinho da vida sem rumo. Em tal vida, Jeremias descobriu a liberdade das múltiplas visões que ele poderia ter, assistindo tudo de diferente ângulos, dormindo debaixo de várias pontes. A ausência de posses o fez perceber que ele se degeneraria mais rápido, mas também que tudo o que lhe dera prazer ilusório também o faria desiludir mais tarde. Desiludiu-se cedo demais!! Por isso, ele estava ali, dentro de uma tumba no mundo, com gente lamentando seu andar asqueroso e seus trapos catinguentos. 

Mas é o que fazem com seus mortos, não é mesmo?? - perguntou-se. A diferença é que mortos já não tem olhos para verem suas mulheres lhes sorvendo a fortuna com esbórnias, nem seus filhos crescendo sem direção. Mortos não sentem o vento no rosto, quando todos os esqueceram há muito, e quando até os deveres e os impostos não mais lhes importunam. Espantalhos de si mesmos é o que são esses mortos-vivos, fugindo do espelho como se tivessem realmente alguma esperança que os anos não tivessem avançado em mais um dígito.

Lá está Jeremias, olhando para a poça d'água. Chuva de verão  açoita seu lombo. Olha para a poça como Narciso para o Lago. Se apaixonou por sua Liberdade, não como para uma rota de colisão entre astros, mas como a única forma de sair do olho do furacão, e vislumbrar a vida fora dos sofrimentos "normais" e pesados. O sofrimento agora era leve. Deixou as roupas caras como um espírito que descansa do corpo que não mais anima.

No dia em que o último suspiro de amor se foi com a última lágrima derramada, ele secou de sua fonte de angústias. Ele soltou a corda que o mantinha atado à sua morte, vivida em meio a ilusões. Ele disse para si que estava morto para essa vida. Mas qual a vida que não morre a cada adormecer?? Qual vida não morre em cada ar que se expira??

Qual não é a vida tal um recomeço em cada minuto em que o sol se apronta para nascer?? A chuva cessou. Jeremias parou de pensar. Ele estava cansado, e adormeceu na poça d'água. Jeremias achava que estava, enfim, morrendo de verdade. Mas era somente mais um final de tarde. 

Jeremias não morreu, embora, ainda que queira, ele não tenha consciência disso.

Comentários

  1. Nossa! Fiquei com medo da situação sabia?
    Fora isso, sinto saudades de você meu amigo.
    Bjs Gê

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  2. Ebrael,

    Há muitos Jeremias neste mundão. Uns próximos de nós - quem nunca viu mendigos? - outros um pouco mais distantes.
    Em frente ao jornal onde trabalhei por alguns anos, ficava um mendigo, ora deitado, outras vezes sentado, lendo um jornal. Não tinha o aspecto do Jeremias, descrito na crônica, mas roupas esfarrapadas e sujas (mas não imundas; acho, até, que a lavava com frequência). Confesso que nunca havia reparado e nem visto que o homem ali passava seus dias e noites. Um colega de trabalho me chamou a atenção: mostrou-me e depois falou-me sobre ele. Em outra ocasião cheguei a conversar com ele.

    Era um homem culto, fala polida, português impecável; possuía família e filhos bem sucedidos; mas dele não falava. Um outro Jeremias? Creio que sim.

    Três coisas me saltam aos olhos nesta crônica: o tropeço noticiado (um escândalo, provavelmente); a senhora na escadaria da igreja; o medo de acontecer o mesmo com eles - seus algozes. Acredito até num duplo medo: medo de estar na sarjeta, medo de receber o mesmo tratamento que ora lhes aplicava.

    Ao contrário dos muitos Jeremias, há ainda poucos (mas há) que estendem a mão, ajuda a levantar, se possível reconduzir de volta a vida. Este, não falo de Deus, mas de pessoas que se dispõe a fazer aquilo que gostaria que lhes fizesse, se estivessem em situação semelhante.

    "Como quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles" (Lucas 6:31).

    Abraço do amigo,

    Antonio

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  3. Que lindo, esse texto! Me fez refletir sobre a vida, desejos, sonhos, medos...
    Vive-se um mundo de ilusões, desconhecimento de si mesmo e quando a realidade bate a nossa porta, nem sempre estamos preparados para ela.
    Jeremias caiu ou migrou de uma ilusão para outra?
    Abraços
    Bel

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  4. Ebrael,

    Simplesmente fascinante a sua crônica.

    Quantos Jeremias existem pelo mundo? Nós podemos ser um "Jeremias" e não nos apercebermos disso.

    Devemos viver intensamente cada minuto de nossas vidas, pois se deixarmos a vida passar sem fazermos nada que a mude para melhor, poderemos acabar como o Jeremias... Olhando-se através de uma poça d'água.

    Parabéns!

    Bjs.

    Rosana.

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  5. Saudações!
    Que Post Fantástico!
    Amigo Ebrael, há centenas de reflexos nas esquinas da vida de muitos, Jeremias, muitos é que não se dão conta da profunda mensagem que eles nos passam.
    Parabéns por mais um magistral texto!
    Ótimo Post!
    Abraços,
    P.P.
    LISON.

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  6. Em cada esquina encontramos um Jeremias, cada um carregando sua história e sua cruz.

    Quem nunca andou em circulos ou sentiu-se perdido em algum momento da vida?

    Mas precisamos acreditar , confiar e não desistir.

    Parabéns escritor Ebrael a cada dia escrevendo melhor.

    Bjinhosssss

    Joicinha

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  7. Olá, Ebrael!

    Sempre existe uma volta, sempre existem os momentos a serem vividos que poderão nos levar para trás em termos de progressos financeiros e profissionais, mas devem ser vivido, vale a pena ser vivido. A vida nos faz fazer coisas que talvez não faríamos novamente, mas fizemos e não podemos volta atrás. Sim, como é bom viver a vida na sua plenitude, seja de qualquer forma, mas vale a pena viver a vida.

    Abraços

    Francisco Castro

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  8. Um texto lindo e triste.
    Os Jeremias da vida estão por aí. Todos têm uma história de vida digna, que se perdeu ao longo do tempo por razões que somente eles sabem.
    Essa história nos leva a meditar o quanto somos felizes e às vêzes não sabemos disso, e, o quanto nós estamos vulneráveis ao infortúnio se não soubermos valorizar os bens que a vida colocou em nossas mãos.
    Abraços
    João

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  9. Venho retribuir a sua visita.

    Muito interessante este seu espaço, voltarei cá mais vezes. Prometo

    Beijinho

    Carmo

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  10. Muy interesante tu relato. A veces la muerte es deseada para obtener paz.
    un abrazo

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  11. Ebrael

    Senti a tua falta.
    Eu tambem tenho andado sem tempo
    Consegui em Dezembro lançar o livro de Poesia.. MAGIA DE NATAL.
    este mês a Editora está a tentar colocar no mercado o livro...Sporting em poesia...
    Portanto o tempo é mesmo escasso. Tenho outro de prosa...Seermão aos pais que só estamos à Espera de luz verde e de Editora.

    Este Teu Jeremias é fantástico retrata a vidad e todos os que por aí andam...adorei ler...um beijo

    deixo...



    RUGIDO

    Rugido
    Rugido forte
    Rugido de Leão...
    Leão verde, castanho ou amarelo
    Animal...Rei...
    Rei da selva...
    Rei do Mundo...
    Fazes inveja...
    Fazes sofrer...
    Mas és o nosso símbolo...
    Símbolo nobre e corajoso...
    E por isso...
    Nós sofremos contigo...
    Gostamos de ti...
    Quando ganhamos...
    E quando perdemos...
    E no perder...
    Ainda te queremos mais...
    Pois aí sentimos o carinho...
    De te confortar...
    De te pagar devagarinho...
    E dizer-te baixinho...
    Amanhã, vamos ganhar!...

    LILI LARANJO

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  12. Ebrael, enquanto lia este post incrível, fui lembrando de algumas passagens, mais velhas e mais novas. Antiga: um mendigo que morava
    perto da minha ex-casa e era uma pessoa super bacana. Um dia me
    contaram de sua origem, ele tinha uma vida boa, largou tudo por
    decepção e preferiu morar na rua do que voltar para casa. Atual:
    um senhor bonito e bem arrumado, andando bebado tão cedo nas manhas
    de cada dia do final do ano que passou. As vidas de cada um de nós
    podem ser traçadas em livros, com certeza com momentos de muita
    tristeza, outras de alegrias, ou até mesmo pouca, a ponto de não se
    ver mais a esperança de dias melhores.

    Acho que é por isso que tenho por hábito sempre dar apoio construtivista
    aos amigos, quero ve-los bem, quero que superem seus problemas, quero
    que suas familias não se acabem jamais.

    Bjs

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  13. Maravilhosa crõnica, Ebrael! Fiquei aqui pensando. Existem muitos Jeremias na beira da Estrada, ou nas escadarias das igrejas, que muitas vezes fingimos não ver.

    Alguns foram arremessados para lá, nas voltas que a vida dá e com a colaboração ou omissão dos seus semelhantes. E isso amigo, pode acontecer com qualquer um de nós.

    Outros, fizeram uso do seu livre arbítrio e não suportando as pressões e decepções, optaram por se retirar da Sociedade, passando a viver da caridade alheia, abrindo mão dos seus bens materiais.

    Existem também os que ficaram, travando suas batalhas diárias e tentando melhorar a cada dia como pessoa.

    O que acredito é que, não importa a escolha que fizermos, a vida se encarregará de nos ensinar aquilo que precisamos aprender. Alguns de nós já descobriram que podem aprender pelo amor, mas a maioria ainda só consegue seguir adiante através do caminho dor.

    Adorei sua postagem!

    Bjs

    Denize

    ResponderExcluir
  14. Obrigado por vir e comentar. Agradeço ainda mais por ter se preocupado em dar uma dica. Pude notar que é bem familiarizado com a escrita.
    Este blog, gazetasetetrombetas, não é ao qual mais me dedico, este é na verdade o blog onde desabafo sobre minha vida futebolística, como peladeiro e como torcedor (sorrio).

    Gostaria que desse uma olhada em meu blog ao qual muito me dedico http://jefhcardoso.blogspot.com e ali deixasse seu comentário e também qualquer palavra que ache contribuir para a melhora deste trabalho.

    Abraço forte e amigo: Jefhcardoso apaixonado pela vida.

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  15. Não sou da maçonaria. meu pai era e meu filho é De Molay. Eu sou Rosacruz e Martinista há quase 15 anos.
    Obrigada pela visita e por seu comentário tão carinhoso para com o meu trabalho.
    Volte mais vezes, FOI DESSE JEITO QUE EU OUVI DIZER... terá sempre uma história para te contar.
    Saudações Florestais !

    ResponderExcluir
  16. Olá amigo Ebrael, excelente texto. Existe muitos Jeremias nesse mundo, Muitos deles são como este. Eles vivem assim ou por opção ou desgosto. Conheci uma mulher que a família é rica, ela vivia viajando para todos os lugares e só vestia roupas de grif, um dia resolveu mudar e se tornou mendiga, ninguém sabe o por que desta decisão. A família quando a vê chama ela para casa, mas a resposta é sempre não.
    Até hoje não entendo uma pessoa assim, a qual tem um lar e vive na rua mendigando. Bem cada um tem suas opções e sentimentos perante a vida, cada qual escolhe seu jeito de vivê-la.

    Abração.

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