Devora-me!!

O Destino é uma Fênix, gestada no Coração e parida, aos gritos, pela Vontade. 
(Ebrael Shaddai)


Olhou no alto de uma árvore o homem com olhar em chamas azuis, e encontrou, num dos buracos do tronco oco, um ninho de corujas. Havia um ovo apenas dentro dele. Não, desta vez não vou comê-lo, a despeito do que gostava de fazer quando eu era mais jovem - disse para si mesmo. Quero muito, mas não vou fazer isso!!

Desidério era seu nome de Batismo. Desidério Valente. Sua mãe que, antes de tê-lo era estéril, foi quem lhe pôs esse nome, sugerido em um de seus sonhos em meio à gestação. Desidério vem da palavra em latim para "desejo". Fez jus ao nome escolhido já precocemente, desde o ventre, nascendo prematuro, dizem que motivado pela ânsia de sua mãe por um filho. Sua mãe se chamava Melissa, e seu pai, Frutuoso. Viviam os três em uma terra arrendada à criação de ovelhas, das quais aproveitavam a carne e a lã, no interior do Rio Grande do Sul.

Desidério, desde jovem foi um homem fogoso, que atraía as mulheres de toda a redondeza, bastando, para isso, apenas seu cheiro instilado no ar. Agia conforme seu nome sugeria, movido pelo ímpeto, impulsivo como era! Correu todo o Rio Grande em aventuras amorosas e em meio a vícios e mesas de jogo.  Certo dia, jogado numa sarjeta imunda, ébrio ao extremo, arrebentado por seus credores, a quem oferecera até o que não era seu, a vida, conseguira balbuciar apenas uma frase:

 - Devora-me, Paixão!!

Quando acordou, num quarto de uma Santa Casa em Porto Alegre, nem se lembrava do ocorrido e porque estava todo remendado em curativos. Não demorou muito até que sua benfeitora aparecesse. Débora era seu nome. Perguntou-lhe o que o levou até aquele estado lastimável. Ele preferiu se calar. Apenas agradecera. Ela se fora, triste, porém mais tranquila pela obra daqueles dias.

No outro dia, ela voltou com flores e um chá com torradas, já que refrigerantes não eram recomendados, pois havia suspeitas de que ele estivesse com pneumonia. Ele pedira uma cerveja, uma Bohemia, mas ouviu uma sonora negativa por parte das freiras. Apenas chá, e evite o café, pois aqui não é permitido que se fume - fulminou a velha madre, com um ar formal que gelava a espinha dos presentes.

A sós, conversaram ele e Débora, por horas. Ele já estava com o humor recuperado, com tantos paparicos de sua mais nova amiga e salvadora, Débora, e das enfermeiras, que se seguravam para não trairem seus votos. Débora lhe contou que encontrou seu corpo estirado em uma sarjeta, em uma esquina próxima da saída para Canoas. Chovia muito. Depois de um dia de sermões e decepções em família, não estava afim de ouvir seu Coração lhe dizer que omitiu socorro a alguém desmaiado. Poderia ficar doente, e ficou mesmo, quem sabe se não estava para morrer?? Haviam apenas cédula de identidade em seu bolso, com uma foto antiga, de quando tinha apenas 13 anos, e um "santinho" de São Jorge, agora desfeito pela água.

"Seu 'santinho' se esfarelou, mas você reviveu, graças a Deus", disse Débora, rompendo um silêncio de quase dez minutos, em que só se ouvia a televisão do quarto ao lado. "Graças a você, Débora... seu nome é Débora, não é?" Ele riu logo após, e continuou:

 - Desculpe-me por ser tão seco. Só queria saber até onde você seria assim, tão formal, tão "durona". Os dois riram muito em seguida, comentando as fofocas dos corredores, do que se falava, de ruídos monossilábicos que ele ouvia pela madrugada adentro, vindos da dispensa.

Com o diagnóstico de uma pneumonia persistente e dupla e uma infecção renal, Desidério ainda continuava internado, já há quase dois meses, não obstante seu estado de ânimo, segundo ele, estar melhor do que quando estava na rua. Sem saber, seu Coração estava sendo remendado, aos poucos, com "remendos novos". Mas, para isso, segundo Jesus, era preciso uma roupa nova (um Coração novo), para que os remendos não tornassem a se abrir. Seria tudo pela força de uma amizade nascente?? Seria esse Coração a mesa da Grande Obra sobre a qual Débora deveria operar?? Seus anos trabalhando em postos de saúde a fizeram crer que nem todo viciado é volúvel, e que volubilidade era um distintivo dos medíocres, e não dos visionários.

Conhecendo toda a história de Desidério, Débora acercou-se de um cenário de batalhas horríveis para uma libertação que não vinha. A Paixão, segundo ele, que vivera até ali em constante vínculo com ela, se assemelha a um Polvo Libertador, que nos arrasta das tocas profundas e escuras para um mundo hiperiluminado. No meio do Caminho, descobre-se que há um abismo ainda a ser vencido. A Liberdade, a ausência de vínculos estreitos para os imprevidentes, exigiria um movimento a mais do que abraçar com força os tentáculos. Exige um salto heróico, um salto de Ícaro, mas sem asas, munidos que somos  apenas da Vontade Verdadeira. Sem darmos esse salto, estaríamos a mercê de um Oceano de águas turvas, no meio do caminho, por quase uma eternidade, mergulhados na viscosidade das comodidades irregulares.

Já passara-se mais de um mês, e Desidério percebeu que não pensava mais nos vícios de antes. Seu hábito agora era pensar em Débora, e isso porque não chegara, durante esse tempo, a menos de um metro dela. Só havia tocado Débora uma vez, em aperto de mãos, no segundo dia de sua internação, o "dia do chá", como ele mesmo falava, com alegria e entre risos.


Crônicas, contos, Rio São Francisco


Desidério, então, tomou coragem, e resolveu lhe contar um segredo:

 - Certa vez, estava naquela fazenda fétida do interior. Minha vida era uma chateação! Encontrei um ovo de coruja, em um ninho, numa toca de árvore. Prometi a mim mesmo que não o iria comer. Estava em gema ainda. Não me contive, e na tarde do dia seguinte fui lá, e o comi.

 - Mas porque rompeu com o que prometeu?, perguntou-lhe Débora.

 - Naquela noite da promessa, sonhei com o tal ovo. Estava eu, disse minha mãe, com muita febre. No sonho, do ovo ouvi uma voz que me dizia: "Desejo, eu sou a Paixão. Portanto, devora-me!!" Então, depois de ouvir essa frase por seis vezes, eu acho, comi o ovo do sonho. No dia seguinte, instintivamente, fui e comi o ovo de verdade, diretamente no ninho. Tempos se passaram, anos na verdade, e um dia, sem ter para onde ir e acabar com aquele marasmo da fazenda, decidi fazer um tal ritual, inventado por mim, pegando um ovo de pata, chamando-o de Paixão, e pedi para que me devorasse. Peguei o primeiro caminhão de frutas que saiu da fazenda vizinha e me fui para o Mundo.

 - Esteve todo esse tempo procurando pela Paixão, e encontrou-a? Se sim, sob a forma de quê??

 - Sob a forma de vícios e ilusões!! A Liberdade sem rumo é um navio sem um mastro e sem velas!!  Não se chega a lugar algum, caminhando sobre as águas de olhos fechados. Ora, caminhar sobre as águas é um milagre, mas se você não sabe por quê quer o milagre, então ele se torna em maldição, como no meu caso o foi.

 - Milagre foi você ter sobrevivido, isso sim - remendou Débora. E esse você não desejou...

 - Sim, é verdade. Foi você quem decidiu me devolver à Vida. E para finalizar, sonhei novamente com um ovo, nessa última noite. Ela me dizia a mesma coisa: "Devora-me, Desejo!!". Dessa vez, eu hesitei em tocar o ovo. Só me decidir a tocá-lo, quando a voz cessou e a casca revelou o conteúdo, e não era gema...

 - E o que havia dentro?? - curiosa, Débora lhe perguntou.

 - Dessa vez não tinha como fazer omelete, pois dele saiu-me você. Não era Paixão, acho que era...

Ela o interrompeu, com seu dedo indicador, tocando-lhe os lábios e pedindo-lhe silêncio. Um silêncio que haveria de durar 11 dias, quando ele saiu do hospital.

Comentários

  1. Joicinha querida, fiquei muito feliz com a sua visita.

    Gostei muito do seu blog, estou acompanhando e espero novas visitas suas.

    Beijão do ZC

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  2. Olá Zé Carlos!

    Fico muito grata com a visita e agradeço os elogios.
    Ficaremos muito contente com a sua participação em nosso blogger. Volte sempre!

    Joici e Ebrael

    bjs

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  3. Olá!

    A liberdade é o objetivo de qualquer pessoa, entretanto ela é perdida por causa do amor. A liberdade e amor podem está tão próximos, mas também está tão distantes. Muitas vezes o amor nos aprisiona, pode nos transformar em um escravo ou em um louco.

    Abraços

    Francisco Castro

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  4. Olá Ebrael!

    Um ovo é vida. A forma é dada por nós. Pelos nossos desejos, pelos nossos sonhos, pelas nossas fugas, pela nossa maturidade ou desistência. A decisão é nossa. Um ovo é vida. Nem que seja em omeleta.

    Belíssimo conto!

    Beijos
    Luísa

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  5. Olá Ebrael ,nos brindou com mais uma bela crônica, está de parabéns. Tudo em demasia é prejudicial, costumo dizer sempre isso. Liberdade é uma maravilha, mais se soubermos vivê-la, senão ela nos escravisa por mais incoerente que isso possa soar. A paixão e o desejo ardem, queimam no peito e podem evoluir para o amor ou perecer tal como erva daninha. Já o Amor, esse sentimento elevado e único, tudo pode, tudo alcança se realmente for verdadeiro e esse sim pode nos trazer de volta a vida, como aconteceu com o Desidério e a Vida é o bem mais precioso que nos foi generosamente orfertado pelo criador.

    Linda crônica , preciso dizer que adorei não né?! =]

    Beijos no coração.
    Márcia Canêdo

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  6. Belíssimo conto. Ovos: comelos de mais é prejudicial a saúde, liberdade: devemos saber dosá-la e amor: é tudo na vida de uma pessoas, se não tem liberdade nele não é amor é escravidão.

    Bjs.

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  7. Beautiful story and post! "Freedom is a rudderless ship", a brilliant analogy. Bravo, mon ami!

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  8. Mandou bem amigo, sensacional sua crônica, liberdade deixada para traz pelo amor é fogo.
    Abraços forte

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  9. Ebrael, adorei este texto em forma de fábula, como Jesus Cristo falava aos seus discipulos e á multidão que o seguia.

    Nem sempre o Homem consegue separar o trigo do joio.

    Um bom fim de semana

    Carmo

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  10. Saudações!
    Que Post Fantástico!
    Amigo EBRAEL, se dar o prazer de ler as suas crônicas é se premiar com um mundo fascinante de magia e encantos.
    E assim, nos conscientizamos que podemos ser devorados num fritar de ovos.
    Parabenizo-o fervorosamente pelo brilhante Conto!
    Parabéns pelo Post!
    Abraços,

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  11. Ebrael

    Que conto lindo!...
    O Desiderio teve sorte em encontrar uma mulher como Débora...foi como um iman para atrai-lo para a boa vida,uam vida sem vicios e por isso se salvou.

    Adorei o sonho dele:a Débora a sair da casca do ovo! E ainda dizem que anjos não existem...

    beijnhos
    joana

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  12. Interessante como os sonhos trazem à tona aquilo que está "entranhando" no nosso inconsciente.

    Gostei do seu blog.

    Voltarei. E espero que você volte também.

    Abraços.

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  13. A paixão e o amor, para os mais afoitos, podem parecer que correm em linhas tênues. Mas não o fazem. Isto porque, quem ama pondera, a paixão apodera.

    Quem ama, navega por águas tranqüilas porque traz no peito, a força que só o amor tem; a tranqüilidade de não saciar a fome, mas alimentar-se.

    Lindamente escrito, com o dom do conhecimento que Deus lhe deu, sua história tem um significado especial pra mim, que ando cultuando o amor, nos quatro cantos da tela, através de Santiago e Alice.

    E assim como eles, desejo que Desidério e Débora possam se descobrir diante do amor, ao qual o destino uniu, nestes acasos aparentemente inexplicáveis que a vida propõe.

    Bjs,

    Valéria

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  14. Ebrael,

    Muito lindo!

    Bom domingo.

    Beijos.

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  15. Ebrael,


    Estou passsando por aqui para lhe desejar uma ótima semana.


    Abraços.

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  16. Amigo, mais uma bela crônica....
    Sabe, amar as vezes é como caminhar num abismo que não acaba, num caminho que não chega, num momento que se deseja!
    Beijo no coração

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